sábado, 12 de abril de 2008

Dois filmes brasileiros

Estômago mostra a evolução profissional de um paraibano que chega a São Paulo e começa a se virar como cozinheiro. As primeiras imagens são interessantes, com o personagem de João Miguel perdido no centro de Sampa, embaixo ou em cima do minhocão, andando meio sem objetivo. O talento dele para a cozinha fará com que conheça uma prostituta - com quem vai querer se casar, e um dono de restaurante italiano - que o passará para trás. Parelelamente, acompanhamos o personagem na prisão, em saltos temporais que incomodam muito mais pela imprecisão nas passagens do que pela ignorância do que pode ter acontecido para ele estar ali. Conforme o tempo passa, começa a ficar previsível que ele cometeu um crime passional. O segundo crime, cometido na prisão, é totalmente sem nexo. É aquela velha história da verossimilhança. Adoro coisas inverossímeis, mas Marcos Jorge construiu um personagem até bem definido, e a atitude dele no final não condiz com a construção. Fica muito claro o sentimento de que foi só um truque barato de roteiro, algo para impressionar e surpreender, mas às custas de se perder qualquer coerência existente.

Pior ainda é Maré - Nossa História de Amor, de Lúcia Murat. É muito forçada a simetria com Romeu e Julieta, e o final, que é ainda mais forçado para se assemelhar ao final da tragédia de Shakespeare, abusa da nossa paciência, justamente por acreditar que personagens estão ali como fantoches, e podem realizar qualquer coisa que a diretora queira, abrindo mão de uma unidade que o caracterize. Pede-se uma identificação, mas o que temos é a traição de um espectro histórico, de um conjunto de coisas que definem as pessoas dentro de um filme. Dá para adotar um mecanismo em que os personagens sejam realmente manipulados por títeres, mas não é uma operação fácil de se fazer.

No fundo, ambos os filmes têm problema semelhante. Penso que isso tenha a ver com a dificuldade do cinema brasileiro em mostrar a crueldade humana. Ou ela entra como efeito arbitrário dos autores (caso de João Miguel em Estômago) para produzir algum choque, ou ela entra como maneira de comentar as mazelas do mundo transpondo para ele um espírito trágico que não tem nada a ver com a época e o local. É difícil conseguir que esse truque dê certo. Quando dá, cria um efeito realmente impactante. Mas quando dá errado - a maioria das vezes, cria-se o patético, como em algumas seqüências e no final de Maré.

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em tempo: meu co-editor da Paisà, Filipe Furtado está em Buenos Aires, fazendo uma cobertura do BAFICI. Acompanhem em:

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