sábado, 13 de março de 2004

O Pagamento (2003) - John Woo * * *
Woo em seu território. Identidade ameaçada por perda de parte da memória. Aqui tem mais elementos tradicionais que de costume. A maior sacada do filme é ao mesmo tempo sua maior concessão às convenções do thriller: o personagem que, sabendo que irá perder a memória, prepara tudo para salvar seu futuro. Sacada que permite que Woo brinque com passado e futuro num jogo confuso e envolvente. Há muito maneirismo no filme, mas sempre justificável. A cena da tampa do açucareiro pode ser considerada genial, pois a visão distorcida da mulher passa pela percepção embaçada que Mike tem da realidade. O personagem é ao mesmo tempo obrigado a desconfiar de todos e confiar em sua estratégia anterior à perda de memória. Um subtexto pode ser apreendido disso tudo. A constatação ou não de que sob essa mesma circunstância iríamos fazer exatamente a mesma coisa antes e depois, ou seja, tudo que Mike preparou na antevisão, ele intuia que iria executar quando chegasse a hora. Woo interessa-se menos em provocar "nossos amigos verossímeis" do que em analisar a possibilidade de isso acontecer, como se não mudássemos ou, se mudássemos, acabaríamos pensando de forma parecida por circularidade. Complicado e angustiante, mas pertinente em tempos de mudanças de atitude de políticos do mundo inteiro.
Elogio da encenação (e não concordo com a ausência de balé apontada por Inacio araújo), O Pagamento nutre-se de uma série de implausibilidades para se aventurar num terreno caro ao diretor, a perda de identidade. Dessa forma, em quinze minutos de projeção, já sabemos, pela mise-en-scène, que estamos vendo um filme de John Woo, com angulações originais e ação coreografada . O filme ressente-se apenas de um final meio rastaquera para o que estava sendo muito bem articulado. Algo como uma mudança do tecno para o pop adolescente. Mudança que Woo não realiza muito bem.